quinta-feira, 18 de outubro de 2007

POÉTICAS POLÍTICAS - O REENCONTRO DO TEATRO COM A LIBERDADE


Texto livremente resumido do “Teatro do oprimido” de Augusto Boal

SUMÁRIO


1.0 INTRODUÇÃO
2.0 COMO FUNCIONA O SISTEMA TRÁGICO COERCITIVO DE
ARISTÓTELES
3.0 A CONCREÇÃO BURGUESA
4.0 CONCEITO DO “ÉPICO”
5.0 A MÁ ESCOLHA DE UMA PALAVRA
6.0 DIFERENÇAS ENTRE AS CHAMADAS FORMAS “DRAMÁTICAS”
E “ÉTICA” DE TEATRO, SEGUNDO BRECHT
6.1 A CHAMADA FORMA “DRAMÁTICA” SEGUNDO BRECHT
POÉTICA IDEALISTA
6.2 A CHAMADA FORMA “ÉPICA”, SEGUNDO BRECHT
POÉTICA MARXISTA
7.0 POÉTICA DO OPRIMIDO
7.1 “ESPECTADOR”, QUE PALAVRA FEIA!
8.0 A NECESSIDADE DO “CORINGA”

9.0 CONCLUSÃO

BIBLIOGRAFIA


1.0 INTRODUÇÃO


A Discussão sobre as relações entre o teatro e a política é tão velha como o teatro... ou como a política. Desde Aristóteles e desde muito antes, já se colocavam os mesmos temas e argumentos que ainda hoje se discutem. De um lado se afirma que a arte é pura contemplação e do outro que, pelo contrário e, portanto, é inevitavelmente política, ao apresentar os meios de realizar essa transformação, ou de demorá-la. Deve a arte educar, informar, organizar, influenciar, incitar, atuar, ou deve ser simplesmente objeto de prazer e gozo? O poeta cômico Aristófanes pensava que “o comediógrafo não só oferece prazer como deve também ser um professor de moral e um conselheiro político”. Erastóstenes pensava ao contrário, afirmando que “a função do poeta é encantar os espíritos dos seus ouvintes, nunca instruí-los”. STRABO argumenta: “A poesia é a primeira lição que o Estado deve ensinar à criança; a poesia é superior à filosofia porque esta se dirige a uma minoria enquanto que aquela se dirige às massas.” Platão , pelo contrário, pensava que os poetas deviam ser expulsos de uma República perfeita, porque, “ a poesia só tem sentido quando exalta as figuras e os fatos que devem servir de exemplo; o teatro imita as coisas do mundo, mas o mundo não é mais que uma simples imitação das idéias - assim, pois, o teatro vem a ser uma imitação de uma imitação.”
Como se vê, cada um tem a sua opinião. Mas será isto possível? A relação de arte com o espectador é algo suscetível de ser diversamente interpretado, ou, pelo contrário, obedece rigorosamente a certas leis que fazem da arte um fenômeno puramente contemplativo ou um fenômeno estranhamente político? É suficiente que o poeta declare suas intenções para que sua realização siga o curso previsto por ele?
Vejamos o caso de Aristóteles, por exemplo, para quem poesia e política são disciplinas completamente distintas, que devem ser estudadas à parte porque possuem leis particulares, porque servem a distintos propósitos e têm diferentes objetivos. Para chegar a estas conclusões, Aristóteles utiliza em sua Poética certos conceitos que são melhor explicados em suas obras. Palavras que conhecemos por suas conotações mais usuais mudam completamente o sentido se são entendidas através da Ética a Nicômaco ou da Grande Moral.
Aristóteles propõe a independência da poesia ( lírica, épica e dramática ) em relação à política; o que me proponho a fazer neste trabalho é mostrar que , não obstante suas afirmações, Aristóteles constrói o primeiro sistema poderosíssimo poético-político de intimidação do espectador, de eliminação das “más” tendências ou tendências “ilegais” do público espectador. Este sistema é amplamente utilizado até o dia de hoje, não somente no teatro convencional como também nos dramalhões em série da TV e nos filmes de far west: cinema , teatro e TV, aristotelicamente unidos para reprimir o povo.
Felizmente, o teatro aristotélico não é a única maneira de se fazer teatro.

2.0 COMO FUNCIONA O SISTEMA TRÁGICO COERCITIVO DE ARISTÓTELES

PRIMEIRA ETAPA – Estímulo da harmatia; o personagem segue o caminho ascendente para a felicidade, acompanhado empaticamente pelo espectador.

Surge um ponto de reversão: o personagem e o espectador iniciam o caminho inverso da felicidade à própria desgraça. Queda do herói.

SEGUNDA ETAPA – O personagem reconhece seu erro: ANAGNORISIS. Através da relação empática dianóia-razão, o espectador reconhece seu próprio erro, sua própria harmatia , sua própria falha anticonstitucional.

TERCEIRA ETAPA – CATÁSTROFE: O personagem sofre as conseqüências do seu erro, de forma violenta, com sua própria morte ou a morte de seres que lhe são queridos.

CATARSE – o espectador, aterrorizado pelo espetáculo da catástrofe, se purifica de sua harmatia.

Atribui-se a Aristóteles a seguinte frase: Amicus Plato, Sed Magis Amicus Verita (“Sou amigo de Platão, mas mais amigo da verdade”). Nisto estamos totalmente de acordo com Aristóteles: somos amigos, mas muito mais amigos da verdade. Ele nos diz que a poesia, a tragédia, o teatro, não tem nada a ver com a Política. Mas a realidade nos diz outra coisa. Sua própria Poética nos diz outra coisa. Temos que ser muito mais amigos da verdade: todas as atividades do homem, incluindo-se evidentemente todas as artes, especialmente o teatro, são políticas. E o teatro é a forma artística mais perfeita de coerção. Que o diga Aristóteles.
O sistema trágico coercitivo de Aristóteles sobrevive até hoje graças à sua imensa eficácia. É efetivamente um poderoso sistema intimidatório. A estrutura do sistema pode variar de mil formas, fazendo com que seja às vezes difícil de descobrir todos os elementos de sua estrutura, mas o sistema estará aí, realizando sua tarefa básica: a purgação de todos os elementos anti-sociais. Justamente por essa razão, o Sistema não pode ser utilizado por grupos revolucionários durante os períodos revolucionários. Quer dizer: enquanto o ethos social não está claramente definido, não se pode usar o esquema trágico pela simples razão de que o ethos do personagem não encontrará um ethos social claro ao qual enfrenta-se.
O Sistema Trágico Coercitivo pode ser usado antes ou depois da Revolução: mas não durante...
Na verdade, só sociedades mais ou menos estáveis eticamente definidas, podem apresentar uma tábua de valores que torne possível o funcionamento do sistema. Durante uma Revolução Cultural, em que todos os valores estão sendo questionados ou formados, o sistema não pode ser aplicado. Vale dizer que o Sistema, enquanto estrutura certos elementos que produzem um determinado efeito, pode ser utilizado por qualquer sociedade sempre e quando possua um ethos social definido. Para o seu funcionamento, tecnicamente não importa que a sociedade seja feudal, capitalista ou socialista. Importa que tenha um universo de valores definidos e aceitos.
Por outro lado, costuma acontecer que muitas vezes se torna difícil compreender o funcionamento do sistema, devido a que se adota uma perspectiva falsa. Por exemplo: as histórias de cine do gênero far-west são perfeitamente aristotélicas, pelo menos todas as que já vi... Mas, para analisá-las, é necessário colocar-se na perspectiva do bando e não na do mocinho; do mau, e não na do bom.
Este sistema funciona para diminuir, aplacar, satisfazer e eliminar tudo que possa romper o equilíbrio social; tudo, inclusive os impulsos revolucionários, transformadores.
Que não reste nenhuma dúvida: Aristóteles formulou um poderosíssimo sistema purgatório, cuja finalidade é eliminar tudo que não seja pelo senso comum aceito, legalmente aceito, inclusive a revolução, antes que aconteça... O seu Sistema aparece dissimulado na TV, no cine, nos circos e nos teatros. Aparece em formas e meios múltiplos e variados. Mas a sua essência não se modifica. Trata-se de freiar o indivíduo, de adaptá-lo ao que pré-existe. Se é isto o que queremos, este sistema serve melhor que nenhum outro. Se, pelo contrário, queremos estimular o espectador a que transforme sua sociedade, se queremos estimulá-lo a fazer a revolução, nesse caso teremos que buscar outra Poética.

3.0 A CONCREÇÃO BURGUESA

Com o desenvolvimento do comércio, já mesmo a partir do século XI, a vida começou a transferir-se do campo para as recém fundadas cidades, onde se construíram entrepostos e se estabeleceram bancos, onde se organizou a contabilidade mercantil e centralizou-se o comércio. A lentidão da Idade Média foi substituída pela rapidez renascentista. Essa rapidez devia-se ao fato, observa Alfred Von Martim (Sociologa do Renascimento), de que cada um começava a construir para si próprio e não para a glória do Deus eterno que, de tão eterno que era, não carecia ter pressa em receber as provas de amor dadas pelos seus tementes fiéis. “Na Idade Média podia-se trabalhar na construção de uma Igreja ou castelo durante séculos, pois que se construía era para a comunidade e para Deus. A partir do Renascimento, começou-se a construir para os próprios homens perecíveis, e ninguém podia esperar tanto tempo”.
Nessa nova sociedade contabilizada, escreve Von Martim, “o valor e capacidade individual de cada homem tornaram-se mais importantes do que o estamento do qual tivessem nascido, e até mesmo Deus transformou-se no Juiz supremo dos câmbios financeiros, o invisível organizador do mundo, sendo o mundo considerado como uma grande empresa mercantil. Com Deus travaram-se relações de contracorrente, prática que ainda hoje corresponde às boas ações do catolicismo.
A burguesia, conclui-se, afirmava um tipo de excepcionalidade contra outro: a individual contra a estamental. Enquanto sua principal contradição era contra a nobreza feudal, a burguesia propunha o homem - esse mesmo homem que foi mais tarde, por ela própria, submetido às mais severas reduções, quando a principal contradição burguesa passou a ser com o proletariado. Porém, esperou o momento oportuno para iniciar essa nova tarefa e só começou a executá-la quando assumiu definitivamente o poder político. Quando, no dizer de Marx, as palavras do slogam: Liberté! Egalité! Fraternité! Foram substituídas por outras que melhor traduziam seu verdadeiro significado: “Infantaria! Cavalaria! Artilharia!”. Só então começou a reduzir o homem que ela mesma propusera.

4.0 CONCEITO DO “ÉPICO”

A maior dificuldade para compreender as extraordinárias transformações que sofre o teatro, com a contribuição do pensamento marxista, consiste na deficiente utilização de certos termos. Justamente porque essas gigantescas transformações não foram imediatamente percebidas, as novas teorias foram explicadas com o velho vocabulário: para designar novas realidades se utilizaram velhas palavras, tentou-se utilizar novas conotações para palavras já cansadas e exaustas por sua velhas denotações.
Brecht usa a expressão “teatro épico” principalmente em contraposição à definição de “poesia épica” que nos dá Hegel. Na verdade, toda a Poética de Brecht é, basicamente uma resposta a uma contraposição à Poética idealista hegeliana. Quero que isto fique claro: a poética de Brecht não é uma categoria (épica) de uma poética anterior, mas se constitui, ao contrário, em uma poética inteiramente nova que inclui (como a de Hegel) os gêneros lírico, épico e dramático. A confrontação central entre estas duas Poéticas ( hegeliana e brechtiana) se dá no conceito de liberdade do personagem, como já veremos: para Hegel o personagem é inteiramente livre quer se trate de poesia lírica, épica ou dramática; para Brecht ( e para Marx ) o personagem é objeto de forças sociais.

5.0 A MÁ ESCOLHA DE UMA PALAVRA

A Poética marxista de Bertold Brecht não se contrapõe a uma outra questão formal, mas sim à verdadeira essência da Poética idealista hegeliana, ao afirmar que o personagem não é sujeito absoluto e sim objeto de forças econômicas, ou sociais, às quais responde, e em virtude das quais atua.
Se fizermos uma análise lógica da ação dramática tipicamente pertencente à Poética hegeliana, diremos que se trata sempre de uma oração simples com sujeito, predicado verbal e objeto direto. Exemplo: “Kennedy invadiu a Praia Girón”. Aqui o sujeito hegeliano é “Kennedy”, cujos movimentos interiores do seu espírito se exteriorizaram de forma a ordenar a invasão de Cuba. “Invadiu” é o predicado verbal e “Praia Girón” é o objeto direto.
Se fizermos agora uma análise lógica da ação dramática segundo uma poética marxista, como a que propõe Brecht, a frase que a explicaria deveria necessariamente conter uma oração principal e uma oração subordinada e nesta o personagem “Kennedy” continuaria sendo sujeito, mas o sujeito da oração principal seria outro. Esta frase seria mais ou menos assim: “Forças econômicas determinaram que o presidente Kennedy invadisse a Praia Girón!”. Creio que está claro o que propõe Brecht: o verdadeiro sujeito são as forças econômicas que atuam atrás de Kennedy. A oração principal, nesta poética, é sempre uma inter-relação de forças econômicas. O personagem não é livre, em absoluto. É objeto-sujeito!

6.0 DIFERENÇAS ENTRE AS CHAMADAS FORMAS “DRAMÁTICAS” E “ÉTICA” DE TEATRO, SEGUNDO BRECHT

6.1 A CHAMADA FORMA “DRAMÁTICA” SEGUNDO BRECHT -- POÉTICA IDEALISTA

1. O pensamento determina o ser ( o personagem-sujeito );

2. O homem é dado como fixo, imanente, inalterável,considerado como conhecido;

3. O conflito de vontades livres move a ação dramática; a estrutura da peça é uma estrutura de vontades em conflito;

4. Cria a “empatia”, que consiste em um compromisso emocional do espectador que lhe retira a possibilidade de agir;

5. No final, a catarse purifica o espectador;

6. Emoção;

7. No final, o conflito se resolve na criação de um novo esquema de vontades;

8. A harmatia faz com que o personagem não se adapte à sociedade e é a causa principal da ação dramática;

9. A anagnorisis justifica a sociedade;

10. A ação é presente;

11. Vivência;

12. Desperta sentimentos.

6.2 A CHAMADA FORMA “ÉPICA”, SEGUNDO BRECHT -- POÉTICA MARXISTA

1. O ser social determina o pensamento ( personagem-objeto );

2. O homem é alterável, objeto de estudo, está “em processo”;

3. Contradições de forças econômicas, sociais ou política movem a ação dramática; a peça se baseia em uma estrutura dessas contradições;

4. História & ação dramática, transformando o espectador em observador, despertando sua consciência crítica e capacidade de ação;

5. Através do conhecimento, o espectador é estimulado à ação;

6. Razão;

7. O conflito não se resolve e emerge com maior clareza a contradição fundamental;

8. As falhas que o personagem possa ter pessoalmente ( harmatias ) não são nunca a causa direta e fundamental da ação dramática;

9. O conhecimento adquirido revela as falhas da sociedade;

10. É narração;

11. Visão do mundo;

12. Exige decisões.


7.0 POÉTICA DO OPRIMIDO

No princípio, o teatro era o canto ditirâmbico: o povo livre cantado ao ar livre. O carnaval. A festa.
Depois, as classes dominantes se apropriaram do teatro e construíram muros divisórios. Primeiro, dividiram o povo, separando atores de espectadores: gente que faz e gente que observa. Tornou-se a festa! Segundo, entre os atores, separou os protagonistas das massas: começou o doutinamento coercitivo!
O povo oprimido se liberta. E outra vez conquista o teatro. É necessário derrubar muros! Primeiro, o espectador volta a representar, a atuar: teatro invisível, teatro foro, teatro imagem, etc. Segundo, é necessário eliminar a propriedade privada dos personagens pelos atores individuais: Sistema Coringa.
Com estes dois ensaios procuro fechar o ciclo deste livro. Neles se mostram alguns dos caminhos pelos quais o povo reassume sua função protagônica no teatro e na sociedade.
Domínio de uma nova linguagem oferece, à pessoa que a domina, uma nova forma de conhecer a realidade, e de transmitir aos demais esse conhecimento. Cada linguagem é absolutamente insubstituível. Todas as linguagens se complementam no mais perfeito e amplo conhecimento do real. Isto é, a realidade é mais perfeita e amplamente conhecida através da soma de todas as linguagens capazes de expressá-la.
Para que se compreenda bem esta Poética do Oprimido deve-se ter sempre presente seu principal objetivo: transformar o povo, “espectador”, ser passivo no fenômeno teatral, em sujeito, em ator, em transformador da ação dramática. Espero que as diferenças fiquem bem claras: Aristóteles propõe uma Poética em que os espectadores delegam poderes ao personagem para que este atue e pense em seu lugar; Brecht propõe uma Poética em que o espectador delega poderes ao personagem para que este atue em seu lugar, mas se reserva o direito de pensar. No primeiro caso, produz-se uma “catarse”; no segundo, uma “conscientização”. O que a Poética do Oprimido propõe é a própria ação! O espectador não delega poderes ao personagem para que este atue nem para que pense em seu lugar: ao contrário, ele mesmo assume um papel protagônico, transforma a ação dramática inicialmente proposta, ensaia soluções possíveis, debate projetos modificadores: em resumo, o espectador ensaia, prepararando-se para a ação real. Por isso, eu creio que o teatro não é revolucionário em si mesmo, mas certamente pode ser um excelente “ensaio” da revolução. O espectador liberado, um homem íntegro, se lança a uma ação! Não importa que seja fictícia: importa que é uma ação.
Penso que todos os grupos teatrais verdadeiramente revolucionários devem transferir ao povo os meios de produção teatral, para que o próprio povo os utilize, à maneira e para os seus fins. O teatro é uma arma e é o povo quem deve manejá-la.
O plano geral da conversão do espectador em ator pode ser sistematizado no seguinte esquema geral de quatro etapas:

PRIMEIRA ETAPA- Conhecimento do Corpo – Seqüência de exercícios em que se começa a conhecer o próprio corpo, suas limitações e suas possibilidades, suas deformações sociais e suas possibilidades de recuperação;

SEGUNDA ETAPA – Tornar o Corpo Expressivo - Seqüência de jogos em que cada pessoa começa a se expressar unicamente através do corpo, abandonando outras formas de expressão mais usuais e cotidianas;

TERCEIRA ETAPA – O Teatro como Linguagem – Aqui se começa a praticar o teatro como linguagem viva e presente, e não como produto acabado que mostra imagens do passado: PRIMEIRO GRAU – Dramaturgia Simultânea: os espectadores “escrevem”, simultaneamente com os atores que representam; SEGUNDO GRAU – Teatro-Imagem: os espectadores intervêm diretamente, “falando” através de imagens feitas com os corpos dos demais atores ou participantes; TERCEIRO GRAU- Teatro-Debate: os espectadores intervêm diretamente na ação dramática, substituem os atores e representam, atuam!


7.1 “ESPECTADOR”, QUE PALAVRA FEIA!

Sim, esta é, sem dúvida, a conclusão: Espectador, que palavra feia! O espectador, ser passivo, é menos que um homem e é necessário re-humanizá-lo, restituir-lhe sua capacidade de ação em toda sua plenitude. Ele deve ser também o sujeito, um ator, em igualdade de condições com os atores, que devem por sua vez ser também espectadores. Todas estas experiências de teatro popular perseguem o mesmo objetivo: a libertação do espectador, sobre quem o teatro se habilitou a impor visões acabadas do mundo. E considerando que quem faz teatro, em geral, são pessoas direta ou indiretamente ligadas às classes dominantes, é lógico que essas imagens acabadas sejam as imagens da classe dominante. O espectador do teatro popular ( o povo ) não pode continuar sendo vítima passiva dessas imagens.
Como vimos no primeiro ensaio deste livro, a poética de Aristóteles é a Poética da Opressão: o mundo é dado como conhecido, perfeito ou o caminho da perfeição, e todos os seus valores são impostos aos espectadores. Estes passivamente delegam poderes aos personagens para que atuem e pensem em seu lugar. Ao fazê-lo, os espectadores se purificam de sua falha trágica - isto é, de algo capaz de transformar a sociedade. Produz-se a catarse do ímpeto revolucionário! Ação dramática substitui a ação real.
A poética de Brecht é a Poética da Conscientização: o mundo se revela transformável e a transformação começa no teatro mesmo, pois o espectador já não delega poderes ao personagem para que pense em seu lugar, embora continue delegando-lhe poderes para que atue em seu lugar. A experiência é reveladora ao nível da consciência, mas não globalmente ao nível da ação. A ação dramática esclarece a ação global. O espectador é uma preparação para a ação.
A poética do oprimido é essencialmente uma Poética da Liberação: o espectador já não delega poderes aos personagens nem para que pensem nem para que atuem em seu lugar. O espectador se libera: pensa e age por si mesmo! Teatro de ação!
Pode ser que o teatro não seja revolucionário em si mesmo, mas não tenham dúvidas: é um ensaio da revolução!


8.0 A NECESSIDADE DO “CORINGA”

A montagem de Arena Conta Zumbi foi, talvez, o maior sucesso artístico e de público logrado pelo Teatro de Arena até hoje. De público, por seu caráter polêmico, por sua proposta de rediscutir um importante episódio da História nacional - utilizando para isso uma ótica moderna - e por ter revalidado a luta negra como, por exemplo, de outra que se deve instaurar em nosso tempo. Artístico, por ter destruído algumas das convenções mais tradicionais e arraigadas do teatro, e que persistiam como mecânicas limitações estéticas da liberdade criadora.
Zumbi culminou a fase de “destruição” do teatro, de todos os valores, regras, preceitos, receitas, etc. Não podíamos aceitar as convenções praticadas, mas era ainda impossível apresentar um novo sistema de convenções.
Zumbi, primeira peça da série “Arena conta... “ desordenou o teatro. Para nós, sua principal missão foi a de criar o necessário caos, antes de iniciarmos, com Tiradentes, a etapa da proposição de um novo sistema. A sadia desordem foi provocada por quatro técnicas principais que usaram.
A primeira consistia na desvinculação ator-personagem. Certamente não foi esta a primeira vez que personagens e atores estiveram desvinculados. Para sermos mais exatos: assim nasceu o teatro. Na tragédia grega, dois e depois três atores alternavam entre si a interpretação de todos os personagens constantes do texto. Para isso, utilizavam máscaras, o que evitava a confusão da platéia. No nosso caso, tentamos também a utilização de uma máscara; não a máscara física, mas sim o conjunto das ações e reações mecanizadas dos personagens. Cada um de nós, na vida real, apresenta um comportamento mecanizado preestabelecido. Criamos vícios de pensamento, de linguagem, de profissão. Todas nossas inter-relações se padronizam na vida cotidiana. Estes padrões são nossas “máscaras”, como são também “as máscaras” dos personagens. Em Zumbi, independentemente dos atores que representam cada papel, procurava-se manter, em todos, a interpretação da “máscara” permanente de cada personagem interpretado. Assim, a violência característica do Rei Zumbi era mantida, independentemente do ator que interpretava em cada cena. A “aspereza” de Don Ayres, a “juventude”, de Ganga Zumba, a “sensualidade”, de Gongoba, etc., igualmente não estavam vinculados ao tipo físico ou características pessoais de nenhum ator. É verdade que as próprias aspas já dão uma idéia do caráter genérico de cada “máscara”. Por certo, este processo jamais serviria para interpretar uma peça baseada em escritos de Proust ou Joyce. Porém Zumbi era texto maniqueísta, texto de bem e mal, de certo e errado: texto de exortação e combate. E, para este gênero de teatro, este gênero de interpretação adequava-se perfeitamente.
Fazendo-se com que todos os atores representem todos os personagens, conseguia-se o segundo objetivo técnico dessa primeira experiência: todos os atores agrupavam-se em uma única perspectiva de narradores. O espetáculo deixava de ser realizado segundo o ponto de vista de cada personagem e passava, narrativamente, a ser contado por toda uma equipe, segundo critérios coletivos: “Nós, somos o Teatro de Arena” e “nós, todos, juntos, vamos contar uma história, naquilo que semelhantemente pensamos sobre ela”. Conseguiu-se assim um nível de “interpretação coletiva”.
A terceira técnica de criação de caos, usada com êxito em Zumbi, foi a do ecletismo de gênero e estilo. Dentro do mesmo espetáculo percorria-se o caminho que vai do melodrama mais simplista e telenovelesco à chanchada mais circense e vodevilesca. Muitos julgam perigoso o caminho escolhido e várias advertências foram feitas sobre os limites por onde caminhava o Arena tentou-se mesmo uma energica demarcação de fronteiras entre a “dignidade da arte” e o “fazer rir a qualquer preço”.
Ainda uma quarta técnica foi usada. A música tem o poder de, independentemente de conceitos, preparar a platéia a curto prazo, ludicamente, para receber textos simplificados que só poderão ser absorvidos dentro da experiência simultânea razão-música.
Durante todo o período realista, tanto a dramaturgia como a interpretação do Arena buscavam sobretudo o detalhe. Como diz o Coringa em “Tiradentes”: “Peças em que se comia macarrão e se fazia café e a platéia aprendia exatamente isso: fazer café e comer macarrão - coisas que já sabia”.
Zumbi preencheu sua função e representou o fim de uma etapa de investigação. Conclui-se a “destruição” do teatro e propôs-se o início de novas formas.
Coringa é o sistema que se pretende propor como forma permanente de se fazer teatro - dramaturgia e encenação. Reúne em si todas as pesquisas anteriores feitas pelo Arena e, neste sentido, é súmula do já acontecido. E, ao reuni-las, também as coordena, e neste sentido é o principal salto de todas as suas etapas.


9.0 CONCLUSÃO

Brecht cantou: “Feliz o povo que não tem heróis”. Concordo. Porém nós não somos um povo feliz. Por isso precisamos de heróis. Precisamos de Tiradentes.

BIBLIOGRAFIA


VÁRIOS AUTORES. “Estética Teatral, textos de Platão a Brecht”. Editora Fundação
Calouste Gulbenkian – Lisboa 1996

ROUBINE, JEAN JACQUES. “A linguagem da encenação teatral” Jorge Zahar Editor.
Rio de janeiro 1982

VALENTINI, CHIARA. “La Storia di Dario Fo”. Editora Feltrinelli, Milano 1977

COLI, JORGE. “O que é Arte”. Editora Brasiliense. São Paulo 1981

DÉCIO, PIGNATARI. “Informação Linguagem Comunicação”. Editora Cultura.

OSTROWER, FAYGA “Criatividade e processos criativos”. Editora Vozes. Petrópolis
1989.

J. GUINSBURG, TEIXERA COELHO NETTO, RENI CHAVES CARDOSO.
“Semiologia do teatro”. Editora Pespectiva. São Paulo 1988

ARISTÓTELES, “Poética”

BOAL, AUGUSTO. “Teatro do oprimido e outras poéticas políticas”. Editora Civilização
Brasileira. Rio de Janeiro.

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