quinta-feira, 18 de outubro de 2007

No Labirinto de Cnossos


No Labirinto de Cnossos


Flavio Crepaldi


No momento em que o ator entra em cena, começa a se revelar para o espectador o fio de uma história. A partir desse momento cada mínimo detalhe será levado em conta para a assimilação do conteúdo ficcional que se desenvolve perante nossos olhos; cada gesto, cada olhar, leva-nos a entrever o que é e será essa trama que começa. Estabelece-se, assim, uma lógica interna específica e tanto mais intransferível quanto menor for o conteúdo material de uma cena. De fato, se ambientamos uma sala, um parque, ou o que quer que seja visível para o espectador sem necessitar da presença de um ator para dar-lhe vida, podemos de maneira fácil desenvolver ali milhares de situações sem cair em erros grosseiros de lógica. Dito de outra maneira: a base toda está dada. Neste caso, o desenvolvimento do espetáculo será tanto melhor quanto for me revelando aos poucos que aquilo que eu achava que já compreendi de cara não é exatamente o que se constata, outras coisas se passam por trás desta aparência formal inicial – como nos melhores textos realistas.

Mas, voltemos ao palco nu onde temos total dependência do ator...

É ele quem vai nos criar a partir do "nada" essa lógica que me definirá desde os detalhes mais elementares de espaço e ambientação até a mais complicada das situações e relações da cena. É claro que, numa situação de improvisação, os problemas aumentam consideravelmente pois o ator não tem preparado de antemão quais são as ações que irá executar para tornar nossa leitura tranqüila e confortável. Ele próprio é um navegante no escuro, sem nenhuma estrela guia ou carta de navegação; enreda-se num complicado labirinto que ele mesmo cria a cada momento deixando atrás de si um rastro para os espectadores. Essas pistas que nos chegam são as informações que ele nos dá dessa cena-labirinto, é o fio de Ariadne que, unindo o que se passou e apontando o que virá, conduz o espectador a seguir os seus passos rumo ao Minotauro escondido.

Está aí o desafio mais elementar do ator que improvisa: criar ou deixar que se crie uma lógica interna em suas ações de modo que não se contradiga ou anule o que já foi estabelecido, criando assim uma inverosimilhança e o conseqüente afastamento do público. Numa improvisação com mais de um ator, o segundo a entrar também é co-responsável por manter ou esclarecer melhor essa lógica recém-iniciada (evitando "atravessar o samba") e acrescentando também a sua própria lógica de ações. Desta forma, de fio em fio, começamos a criar um enredo.

Quanto melhor detalhado estiver este percurso individual e mais atento aos outros fios que se desenvolvem concatenadamente em cena, melhor e mais clara será a leitura do espectador. Estabelecemos, então, um tear onde os vários fios caminham paralelos e diferenciados até começarem a se entrecruzar formando uma trama perfeita. Esse enredo será tanto melhor quanto mais perfeitos forem os fios (lógicas limpas) e com maior possibilidade de desenvolvimento quanto maior for a extensão (detalhamento) dos mesmos.

Também esse "labirinto" será tanto mais acessível ao espectador quanto mais concreto o for na ficção do ator. Nada mais enfadonho em cena do que o ator que se contenta em simplesmente mostrar ou assinalar a existência de algo, o que freqüentemente ocorre porque sua atenção já caminhou à frente da ação, sendo necessário tapar um buraco deixado para trás (que só é para trás para o ator, para o espectador ainda é presente) ou preparar uma "escada" para a ação que ele considera agora seu foco principal. Deste modo, quanto mais ocorrerem esses saltos de atenção, onde o ator momentaneamente se desliga para religar outra idéia, mais esburacada ou sem curvas se apresentará essa cena, facilmente passando da entrada para o centro ou saída do labirinto. O mais comum, porém, é demolir-se a lógica interna construída até então e o ator se encontrar sozinho e nu em meios a escombros.

Note-se que estamos ainda na ponta do iceberg. Tudo isto é necessário antes mesmo que exista uma primeira relação entre os atores; freqüentemente a palavra nem foi pronunciada, a situação não se estabeleceu plenamente e o conflito nem sequer é apontado. O Minotauro ainda dorme alheio à sua própria existência. Faz-se necessário, porém, que antes que o ator se lance sobre a fera, tenha dado ao espectador uma posição privilegiada para acompanhar a trama: conhecer extensamente o labirinto no qual se move o ator como se ele mesmo fosse Dédalo e tivesse sido o co-responsável por sua construção.

Porém, mais do que dar a "ilusão cênica" ao público, essa rigorosidade com que cada ação é desenvolvida, sua precisão e adequação no espaço e no tempo criando essa lógica interna que irá reger a cena que se inicia, é o que possibilita ao ator o material necessário para o próprio desenvolvimento orgânico e concreto das ações que virão e sua repercussão no enredo ou conflito central mais adiante.

Essa progressão nos acontecimentos da cena a partir desses pontos iniciais é o que dá o caráter extraordinariamente coeso de um bom espetáculo, onde nada surge do nada e cada ação é um elo inviolável da corrente que se iniciou com o primeiro ator a pisar em cena. Embora, para os olhos desavisados, esses primeiros fios tecidos sejam tão semelhantes à urdidura central da trama quanto as lagartas o são das borboletas, a preservação dessa lógica interna desenvolvida na frente do espectador é o que ao mesmo tempo surpreende e confirma a expectativa do mesmo perante a cena.


08 de fevereiro de 2000


Fonte: Grupo Tempo

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