terça-feira, 29 de junho de 2010

História do Teatro - Do Rito Primitivo ao Nascimento do Drama por Cristina Tolentino


Por Cristina Tolentino


O Jogo Lúdico



Máscara de Bali -
usada pelos dançarinos balineses

O homem primitivo era uma criatura dada às práticas lúdicas. Desde o início foi um imitador, trazendo dentro de si uma incontida ânsia de "ser outro". Ele partilhava esse atributo com os animais, mas ultrapassava-os na flexibilidade de seu corpo e voz, na desenvolvida consciência de sua vontade e na capacidade de ordenar seu cérebro. Também brincava com seus irmãos animais, descarregando não só sua vitalidade física, mas preparando-se para ações significativas, como a luta pela sobrevivência, pela vida.

Essa luta pela existência forçou o homem primitivo a uma visão declaradamente prática e utilitária: queria comer regularmente, conquistar seus inimigos e pôr-se a salvo de ataques.

Assim, logo aprendeu que podia realizar seus desejos, simbolizando-os através dos ritos. E o jogo teatral, a noção de representação, nasce essencialmente vinculada ao ritual mágico e religioso primitivo.

O Homem Caçador

O homem caçador, antes de iniciar a caça, realizava rituais que o ajudaria na sua missão. Os atuantes meio dançavam, meio representavam (movimentos de corpo, pulos, saltos), cobriam-se com máscaras, peles e folhagens para identificar-se com o espírito animal. Dessa maneira, o homem primitivo começava a aguçar sua consciência da natureza e intensificava seu ajustamento a ela. Representava uma caçada e seu sucesso nela, tentando torná-la realidade.
O Homem Agricultor

Quando este homem caçador (bastante nômade) passa a estabelecer-se em comunidades (devido ao desenvolvimento da agricultura), começa a desvendar a relação entre seu suprimento de alimentos e a fértil estação das chuvas ou do máximo calor solar. Seu maior terror era a colheita arruinada e um inverno rigoroso. Toda sua concentração estava focada no medo do inverno (relacionado com a morte) e na esperança da primavera (relacionada com a vida). Neste momento, começa a incluir efetivamente algo de pensamento científico em seu rito dramático. Uma série de rituais se desenvolve em determinados períodos do ano: a morte era expulsa no solstício de inverno e durante o equinócio vernal, as tribos celebravam o ritual da primavera.

Evolução dos Ritos


Máscara cerimonial de uma ilha da Nova Irlanda (Nova Guiné)

Gradualmente os ritos assumem maior complexidade: ritmo de dança, símbolos mais sutis e representações mais dinâmicas. A dança pantomima se torna a mais acabada das primitivas formas de drama. O sacerdote que conduz estes ritos, vai assumindo diversas funções dentro dessa complexidade: torna-se um coreógrafo (enquanto condutor de danças mais elaboradas), um inventor (criando os primeiros "adereços" teatrais, quando por exemplo, emprega pedaços de galho em ziguezague para imitar o trovão e o relâmpago que surgem durante a estação chuvosa), um poeta (em virtude da imaginação que o capacita a animar a natureza ou personificar suas forças como espíritos), um cientista (desde que é um fazedor de milagres, um feiticeiro que exorciza doenças - antecipando o poder curativo ou purgativo do drama - e um proponente da idéia de que a humanidade pode obter o domínio da natureza), um filósofo social (pois é quem organiza a representação como atividade comunitária e amplia a realidade da comuna primitiva. Sob sua liderança a natureza não está sendo dominada para o indivíduo, mas para a tribo).
Outros ritos diretamente relacionados com a organização social primitiva, desenvolveram-se sob sua tutela - a iniciação dos jovens na tribo e as diversas maneiras de adorar os ancestrais que cristalizam o conceito da sociedade primitiva.

Com toda probabilidade esse herói, o sacerdote, é o primeiro deus - a personagem sobre cuja imagem são criados os espíritos da natureza e seres divinos. Muito antes que o homem primitivo pudesse conceber a idéia abstrata de um poderoso agente sobrenatural, tinha que competir com um ser humano todo-poderoso.

Assim, se essa figura foi potente enquanto estava viva, poderia ser igualmente potente após sua morte. Ela poderia voltar como um fantasma cuja ira deveria ser prevenida ou apaziguada com ritos tumulares.

As boas razões para essa ira: poderia ter sido assassinado por filhos ciosos de seu autocrático controle das propriedades e mulheres da comunidade; poderia ter sido chacinado pela tribo num ato de rebelião; poderia também ter sido morto, porque a tribo julgou oportuno transferir sua alma mágica e doadora de força para o corpo mais jovem e vigoroso de um novo rei sacerdote; até mesmo sua morte natural poderia encher os descendentes de sentimentos de culpa, por algum desejo inexpresso de vê-lo destruído. Ao lado disso, a potência do morto também poderia ser de natureza benéfica, pois ele foi um guia e zelador de seu povo.

Assim, o principal assunto da tragédia, a MORTE, ingressa no teatro. O homem primitivo nega a morte trazendo de volta o falecido sob a forma de espírito, e o rito do ancestral ou adoração do espírito converte-se em uma representação gráfica dessa ressurreição, nascendo assim, os Ritos Tumulares.

O túmulo torna-se o palco e os atores representam fantasmas.

TEATRO - evocação dos mortos, algo de ressurreição. Espaço da morte e do crivo da vida.
Quando, nessa longínqua data, a MORTE entrou no palco, a TRAGÉDIA havia nascido.

Orgia Báquica
Uma outra forma de negar a mortalidade era aumentar o índice de nascimentos e este era da maior importância para tribos rivais. Daí, vieram representações que interpretavam e induziam à procriação: os ritos de fertilidade. Os RITOS FÁLICOS ou SEXUAIS eram caracterizados por muitos festins e tendiam a reproduzir elementos eróticos do ato sexual. Permitia-se uma total liberação da libido reprimida. Dessas pantomimas é que nasceu a COMÉDIA, com sua imensa alegria e com o riso que silencia muitas ansiedades ou dores do coração do espectador.
A vida era também afirmada pela adoração da potência de um animal. Era costume sacrificar um touro, cavalo, bode ou outra criatura e incorporar seu "mana" ou poder mágico, através da partilha da carne e do sangue. Assim, a morte do animal sagrado era simbolicamente "desfeita" de diversas formas. Se, por exemplo, o sacerdote vestisse a pele de um animal e dançasse, ele podia provar que o animal ainda estava vivo e na realidade era indestrutível.


Um feiticeiro do Cameron usando uma máscara de leão. Ele não finge ser um leão; está convencido de que é um leão. Ele partilha uma "identidade psíquica" com o animal - identidade existente no reino do mito e do simbolismo. O homem "racional" moderno tentou livrar-se deste tipo de associação psíquica (que no entanto subsiste no seu inconsciente); para ele, uma espada é uma espada e um leão é apenas o que o dicionário define.

Os ritos de passagem também eram de fundamental importância para a organização da vida em comunidade: o ingresso de novos adultos na tribo requeria ritos de iniciação e a cerimônia mostrava o adolescente morrendo como criança e renascendo como homem.

Iniciação de circuncisão entre os aborígenes

Nos primitivos rituais de iniciação, o menino é arrancado da infância, e seu corpo é marcado com cicatrizes. Então ele passa a ter o corpo de um homem. Não há como voltar à infância, depois de um espetáculo desses.


Nessa complexidade de rituais podemos perceber o conteúdo do teatro ampliando-se e sua estrutura tomando forma. Ação e imitação no início, amplia-se para uma luta central - a batalha entre a boa e a má estação, entre a vida e a morte.

Esta luta vai se traduzir no teatro como o princípio dinâmico do drama - O CONFLITO.
Apenas um elemento é necessário para completar os requisitos mínimos do drama - a TRAMA - que já estava presente de maneira muito simples nos ritos mais antigos: "meu caminho cruzou com o de um animal feroz, ele rosnou e me atacou, agachei-me, joguei minha lança, disparei minha flecha, matei-o e trouxe-o para casa."

A TRAMA foi ampliada pela lembrança dos feitos das pessoas que eram objeto dos ritos tumulares e adquiriu maravilha e estatura quando os espíritos da vegetação e os espíritos ancestrais foram dotados de notáveis características. Nasce, neste momento, a MITOLOGIA. O MITO, que suplementado pelo material da SAGA, tornou-se o assunto do drama: um deus e a personificação de um poder motivador ou de um sistema de valores que funcionam para a vida humana e para o universo - os poderes do seu próprio corpo e da natureza. Como disse Joseph Campbell: "os mitos são metáforas (imagem que sugere alguma outra coisa) da potencialidade espiritual do ser humano, e os mesmos poderes que animam nossa vida animam a vida no mundo. O mito nos ensina a penetrar no labirinto da vida de modo que os nossos valores espirituais se manifestem" (...) "a fonte da vida temporal é a eternidade. A eternidade se derrama a si mesma no mundo.. e a idéia mítica, do deus que se torna múltiplo em nós. Identificar-se com esse aspecto divino, imortal, de você mesmo, é identificar-se com a divindade."

Na sua evolução, a história dramatizada passa a compreender personalidades individualizadas que viveram, trabalharam, atingiram a grandeza, sofreram e morreram ou, de algum modo, triunfaram sobre a morte. O deus ou herói deificado entrou no teatro com segurança e sua personalidade e importância eram exaltadas e honradas por todos os recursos que o teatro primitivo conseguia concentrar. As peças que assim se materializaram eram chamadas de "PAIXÔES" e surgiram inicialmente no Egito e na Mesopotâmia.

O herói do drama egípcio era Osíris, herói deificado, deus do cereal, espírito das árvores, patrono da fertilidade e senhor da vida e da morte.

Nas "PAIXÕES" representadas em honra de Osíris, os detalhes dos lamentos por sua morte, do encontro do corpo, de sua devolução à vida e das jubilosas saudações ao deus ressuscitado, eram tratados com grande pompa.

A peça converteu-se em parte de um festival grandioso e esfuziante que durava dezoito dias e iniciava-se com uma cerimônia de aradura e semeadura.

Os dramas sírios giravam em torno da figura de Tamuz ou Adônis, deus das águas e das colheitas, que deviam sua abundância aos rios da Mesopotâmia. As "Paixões" de Osíris e Tamuz promoveram progressos fantásticos no teatro: o RITUAL mais elaborado do deus introduziu cortejos e procissões, imagens, quadros e objetos de cena (como o barco de Osíris que era atacado por seus inimigos).

A dura tarefa de organizar a "PAIXÃO" tornou-se cada vez mais uma especialidade e finalmente acabou por passar dos sacerdotes para os LAICOS. E desde que os heróis dessas "Paixões" eram indivíduos definidos, o teatro deu um passo rumo a INTERPRETAÇÃO INDIVIDUAL.

Depois das "Paixões", houve mais dois acréscimos a fim de preparar o drama para a importante posição que ocuparia em tempos posteriores: heróis completamente humanos e diálogos, que se desenvolveriam na Grécia.

Tal como seus companheiros no Egito e na Síria, o grego primitivo estava mergulhado na magia e no ritual. O retorno da primavera era antecipado e celebrado de inúmeras formas: uma delas era a representação do levantamento do espírito da terra - Perséfone - que no mito familiar é arrastada para o mundo subterrâneo por um tremendo amante - Plutão - ou a morte. Em Delfos, para propiciar a chegada da estação fértil, os gregos queimavam uma boneca - "Charila" - a Virgem da Primavera e doadora de graças.

Mas possivelmente a mais importante influência ritual sobre o teatro subseqüente estaria centrada na figura de Dionísio, que era reconhecido sob diversos nomes: Espírito da Primavera, Deus do Renascimento, Deus Touro, Deus Bode... Como deus do vinho, o mais comum de seus títulos, apenas exprimia um aspecto simbólico de sua divindade energética.



"Dionísio e o Teatro"

Seu rito, conhecido como o ditirambo, era uma "dança de saltos" ou dança de abandono, acompanhada por movimentos dramáticos e dotada de hinos apropriados. O sacrifício de um animal, provavelmente um bode, e muita pantomima executada pelo coro de dançarinos vestidos com peles de bode (simbolizando assim a ressurreição do deus bode), também eram traços do rito. Com o tempo, os líderes do ditirambo acabaram por incluir detalhes correlatos, tirados dos muitos contos de ancestrais ou heróis locais, que vinham sendo recitados pelos poetas ou representados em ritos tumulares. Finalmente, as palavras associadas às danças ditirâmbicas - que no inicio eram espontâneas e fragmentárias - tornaram-se cada vez mais elaboradas, sendo essa evolução facilitada pela rápida ascensão da poesia grega. Os versos que eram cantados em uníssono ou divididos entre os coros, começaram a assumir a forma de um diálogo individual.

Assim, quando Téspis, um diretor de coros, com a cara lambuzada de grés branco - talvez simulando o deus morto - se colocou em pé sobre uma mesa e dirigiu-se ao líder do coro, nasceu o diálogo na Grécia. Téspis cria o ator clássico, distinto do dançarino. Sua mesa que provavelmente servia de altar para o sacrifício animal, foi também o primeiro esboço de um palco diferente do primitivo círculo de dança.

Em 535 a.C, surge um concurso de peças, promovido por Pisístrato, que trouxe para a cidade de Atenas um rústico festival dionisíaco. O "teatro" foi construído para acomodar os ditirambos e peças primitivas que compreendiam as principais manifestações dessas celebrações democráticas. Ao lado de Téspis, Pisístrato partilha das honras de haver dado o impulso inicial ao TEATRO GREGO.

Em grande parte, deve-se a Pisístrato, o estabelecimento da voga dos épicos homéricos na cidade. Depois disso, tornou-se bastante simples para a galáxia de heróis homéricos - Agamenon, Odisseu, Aquiles e outros - ocuparem seu lugar ao lado de Dionísio entre as personagens dramáticas do teatro.


Teatro de Dionísio
Dionísio torna-se o patrono do teatro e é honrado com uma elaborada procissão que acontecia na abertura das Dionisíacas Urbanas: um concurso onde cada poeta selecionado apresentava uma tetralogia - três tragédias e um drama satírico. Depois de algum tempo, as comédias também foram incorporadas.

Assim, o drama atinge a maturidade nas eras clássicas da Grécia e de Roma. Dá o primeiro passo em direção à caracterização e ao conteúdo amplamente humano. O teatro termina por tornar-se uma síntese das artes: poesia e ação dramática, dança, música, pintura... e resulta em poderoso órgão para a expressão da experiência e do pensamento humanos.

Como diz Patrice Pavis: "a separação dos papéis entre atores e espectadores, o estabelecimento de um relato mítico, a escolha de um lugar específico para esse encontros, institucionalizam pouco a pouco o rito em acontecimento teatral."

OBS: Aguardem o texto seqüencial -"Teatro Grego"

Bibliografia:


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