quinta-feira, 7 de maio de 2009

O legado de Brecht


Acerca de Brecht
Cortesia da Editora SuhrkampEugen Berthold Friedrich Brecht (1898-1956) era um nome bem burguês, com uns fumos de patriotismo. E assim está... na certidão. Na vida – depois da intervenção do autor – ficou sendo apenas Bertolt Brecht (com o “t” enérgico, sem o “h” e o “d” frouxos da tradição burguesa alemã); Bert Brecht, carinhosamente, ou, simplesmente, b. b., nas assinaturas de cartas e manuscritos. Brecht fazia sua opção desde rala idade e rejeitava, até no nome, burguesia e patrióticos delírios.
Bertolt Brecht – para debuxar uma biografia em largas pinceladas – nasceu em Augsburgo, na Baviera. Interrompeu o curso de Medicina em Munique para servir como enfermeiro na I Guerra Mundial. Em 1918, com vinte anos de idade, escreveu Baal. Na peça, Brecht já penetra fundo na natureza crua do homem. Baal – influenciada pelo expressionismo da época – já caracteriza tangencialmente o que veio a ser toda a intensa produção do vigoroso autor dos anos seguintes. A peça não apresentava ainda, é verdade, a sobriedade crítica – muitas vezes disfarçada em ironia – que veio a identificar esse humanista tão diferente do que a boa sociedade alemã considerava um escritor: Brecht não tinha a diplomacia meio pachola de um Thomas Mann, os requintes quase perfumados – ainda que grandiosos – de Rilke, nem a soberana majestosidade de um Hofmannstahl. Mas isso é de superfície e aparência. Na essência, Brecht foi um dos mais importantes autores do século vinte: é dos teatrólogos mais encenados no mundo e dos mais respeitados teóricos do teatro, com o seu conhecido “efeito de estranhamento” (Verfremdungseffekt) e a educação do espectador obrigado a assumir posição crítica ao ter o poder de julgar a ação representada.
Em 1924 Brecht mudou-se para Berlim, onde foi assistente dos diretores Max Reinhardt e Erwin Piscator. Em 1928 a encenação da Ópera dos três vinténs alçou Brecht à fama. A peça é, talvez, a mais conhecida das suas obras e já mostra a crítica e as teorias teatrais que Brecht veio a desenvolver efetivamente mais tarde.
Bertolt Brecht; Copyright: BundesbildstelleEm 1929 Brecht passou a elaborar sua teoria do “teatro épico”. Em 1933, com a ascensão do nazismo, exilou-se sucessivamente na França, Dinamarca, Finlândia e Estados Unidos (onde permaneceu durante seis anos, de 1941 a 1947). Acusado de atividades antiamericanas – e interrogado por McCarthy –, foi forçado a voltar para a Alemanha, fixando-se em Berlim Oriental, onde criou sua própria companhia, o Berliner Ensemble, que produziu suas últimas peças e foi um dos teatros mais ativos da Alemanha na segunda metade do século XX. Com a teoria que propunha uma representação épica do teatro, Brecht pretendeu opor-se ao “teatro dramático”, que – segundo Brecht – conduz o espectador a uma ilusão da realidade, reduzindo-lhe a percepção crítica. O referido “efeito de estranhamento” tinha o objetivo de estimular o senso crítico, tornando claros os artifícios da representação cênica e destacando conseqüentemente o valor revolucionário do texto.
Brecht foi um escritor multifacetado, mas sempre manteve uma unidade básica, através da qual permanece atual ainda hoje. Sua obra abarca o teatro, a poesia, o romance, o ensaio, a crítica teatral e o aforismo. O autor inovou ao utilizar temas do mundo americano e da nova indústria de produção serial, foi audacioso no ritmo – e na secura – de sua lírica e inovou com as Kabarettchansone da época da inflação galopante da República de Weimar e com os songs americanos tão característicos a partir d’A Ópera dos três vinténs.
A Ópera dos Três Vinténs é, aliás, um manifesto da perenidade brechtiana, da validade e atualidade de sua obra. Em síntese, a peça trata de um bando de mendigos que fundam uma empresa capitalista a fim de melhor competir no mercado. Ora, a ironia é muita, cheia de severidade crítica e alcança aspectos econômicos dos mais atuais.
Para seguir exemplando – e não fazer da Ópera dos três vinténs um único achado fortuito de atualidade –, tome-se A vida de Galileu. A peça tem tudo a ver com as grandes descobertas da ciência na virada do milênio e ainda pontua muito bem a situação mui atual de um grande pesquisador obrigado a lançar mão de aulas particulares, abandonando suas pesquisas, porque o governo não lhe proporciona sequer o suficiente para o de comer.
Seguindo a trilha da obra brechtiana, A boa alma de Setsuan apresenta uma visão atualíssima da corrupção generalizada que reina no sistema: as qualidades da prostituta Shen Te, única alma boa encontrada pelos deuses, só lhe trazem desvantagens e exploração na ordem social vigente. Quando ela se metamorfoseia, fingindo ser um primo distante, de tino comercial, acaba por se adaptar à situação, passando a ser também uma exploradora capitalista.
Copyright - Goethe
A Santa Joana dos Matadouros, com seu clima de sarcasmo generalizado, é outra obra que testemunha a atualidade de Brecht. Potente na crítica, a peça mostra a sujeição de absolutamente tudo ao motivo econômico e não poderia ser mais atual, na apresentação fiel das emoções do mercado e das finanças.
Basta para referendar “validade” e “permanência”?
A obra de Brecht é um testemunho do arrojo combativo da arte e por isso é temida, de modo que Brecht é – ao mesmo tempo – dos autores que mais vezes teve, se não a sentença de morte decretada, pelo menos a vida – e falo de atualidade e validade – posta em questão.
Sempre que Brecht é tachado de utópico; que é vinculado ao colapso do “socialismo realmente existente” e – argumentos mais recentes – que dizem que as únicas obras de sua produção que não estão ultrapassadas são as primeiras peças – Baal e Tambores na noite –, por serem as únicas que não possuem conteúdo “político” nítido; e sempre que dissociam (porque não conhecem) a obra teatral de Brecht de sua obra poética, estão buscando, de sorrate, estratégias e brechas para em seguida “matá-lo” mais facilmente.
Analisando com seriedade a obra brechtiana – coisa que os “assassinos” de Brecht jamais fizeram – vê-se de cara que o autor será sempre atual ou, pelo menos – e isso talvez equivalha a sempre – enquanto houver a exploração do homem pelo homem, a injustiça social, a miséria e a violência do poder...
A poesia de Brecht tem forte conteúdo crítico, ao contrário do que muitas vezes tentam insinuar, especulando a referida dissociação entre o Brecht dramaturgo e o Brecht poeta. Os exemplos – poético-epigramáticos – traduzidos nos capítulos anteriores apenas referendam a combatividade da lírica de Brecht. A poesia abaixo – uma referência direta a Hitler – confirma de maneira ainda mais clara a unidade combativa da obra de Brecht:
Lutam em meu interior
O entusiasmo pelas macieiras em flor
E a aversão ante os discursos do pintor
Mas só a segunda
Me obriga ao lavor.
Quem quer ser ouvido no furacão tem de se expressar em voz alta e brevemente, e Brecht sabia disso. Os “pintores”, mais cordeiros hoje, continuam aí. Se os atuais trovejam tanto e de maneira tão unívoca e hegemônica, Brecht é uma voz dissonante, que mostra que na moeda do mundo ainda existe um outro lado. Com sua obra, Brecht fez dos versos de Heine – de quem é parente na crítica, um século depois – a sua missão, plena de objetividade, dessacralização e luta: 
Uma canção nova, uma canção melhor
Amigos, eu quero vos cantar
Nós queremos, já aqui na terra
O Reino dos Céus levantar.
Queremos ser felizes cá na terra
Não queremos mais ser padecentes
A barriga vagabunda não irá dissipar
O que conseguem as mãos diligentes.
Eia, pois, o tributo ao último dos combatentes da arte, alguém que, conforme disse Maiakóvski – e a citação também não vai gratuita, pois o parentesco é muito e a circunstância adequada (veja-se as cobranças de atualidade, validade estética, etc...) –, sabia da missão dos poetas:
Mas eu afirmo
(e sei
que meu verso não mente)
no meio
dos atuais
traficantes e finórios
eu estarei
– sozinho! –
devedor insolvente.
A nossa dívida
é uivar
com o verso,
entre a névoa burguesa,
boca brônzea de sirene.
O poeta
é o eterno
devedor do universo
e paga
em dor
porcentagens
de pena.1
(Extraído de Marcelo Backes, A arte do combate, Boitempo Editorial, São Paulo : 2003, p. 261-267)



__________________ 

1 De "Conversa sobre poesia com o fiscal de rendas”, tradução de Augusto de Campos. O trecho de Heine (Deutschland, ein Wintermärchen), citado anteriormente, e o poema de Brecht, mais anteriormente ainda, foram traduzidos por mim, Marcelo Backes.

Backes, Marcelo. A arte do combate. São Paulo : Boitempo, 2003. 367 p.

sábado, 2 de maio de 2009

Precisamos de Meyerhold no Teatro, por Ivam Cabral

Divulgaçao
Retrato de Meyerhold, por Petr Vil´iams, 1925


Apesar de Meyerhold e Stanislavski serem tratados como opostos teatrais – um preocupado com a teatralidade, outro com o conteúdo interno – o fato é que os dois se admiravam e respeitavam mutuamente.

Meyerhold iniciou sua carreira na companhia fundada por Stanislavski e Dantchenko, o Teatro de Arte de Moscou, onde trabalhou por 4 anos, desde a sua fundação em 1898. Templo do naturalismo e do realismo psicológico, o Teatro de Arte foi a grande escola de Meyerhold, que em 1902 decide percorrer caminhos próprios, fundando com Kochévérov, outro ator do Teatro de Arte, uma nova trupe, a Sociedade do Drama Novo.



Farto do naturalismo, Meyerhold vai inspirar-se no impressionismo, no cubismo e finalmente no expressionismo alemão para desenvolver uma pesquisa de trabalho muito particular. Propôs uma nova abordagem: um teatro que “intoxicaria o espectador com força dionisíaca do eterno sacrifício”, um teatro estilizado como substitituto da “fantasia apolínea” sugerida pelo naturalismo. A partir de pesquisas com a commedia dell’arte, as improvisações, a pantomima, o grotesco e o simbolismo cênico, desenvolveu uma disposição frontal das personagens com pesquisas voltadas à dicção do ator e com a substituição da cenografia complexa do naturalismo pela iluminação como síntese.



Criou o teatro de linha reta: o ator, juntamente com o autor, o diretor e o público são criadores absolutos do fenômeno teatral. Embora a participação do público fosse apenas emocional, nunca física, através de sua imaginação que deveria ser empregada “criativamente a fim de preencher os detalhes sugeridos pela ação do palco”. Desta forma, libera o ator e força o espectador a passar de uma simples contemplação, ao ato criador:



Também aproxima-se do movimento construtivista que buscava no campo das artes plásticas e da arquitetura uma arte baseada no materialismo, desvinculada de toda a herança cultural idealista do passado e, tomando o princípio da beleza funcional e utilitária, elabora a teoria da biomecânica. Desta forma, a criação artística deixa de ser uma cópia do real para se tornar uma reflexão da realidade, priorizando a relação do intérprete com o público através de jogos que pudessem revelar e intensificar os traços psicológicos de ambos. Defendeu a teatralidade e a estilização e propôs uma dialética de opostos: a farsa contra a tragédia e a forma contra o conteúdo de modo a forçar o espectador a encontrar uma visão mais apurada da realidade e “decifrar o enigma do inescrutável”.



Em 1905, Stanislavski estava perdido. Se por um lado gozava de respeito e prestígio por ter encenado as famosas produções de Tchekhov e Gorki, por outro era alvo fácil dos simbolistas que o consideravam ultrapassado. Até este momento, não havia desenvolvido nenhuma teoria significativa sobre o seu método de trabalho. Convida, então, Meyerhold para dirigir mais uma vez o seu Estúdio. Meyerhold traz para o Teatro de Arte algumas das questões que o haviam motivado a deixar a companhia anos atrás, nomeadamente sua aversão ao teatro naturalista e ao realismo psicológico. Mais uma vez, Stanislavski e Meyerhold irão se desentender artisticamente e o projeto de desenvolverem novamente um trabalho em conjunto é desfeito.



Apesar de Meyerhold e Stanislavski serem tratados como opostos teatrais – um preocupado com a teatralidade, outro com o conteúdo interno – o fato é que os dois se admiravam e respeitavam mutuamente. Meyerhold foi sempre um crítico e admirador persistente do Teatro de Arte e declarou certa vez: “serei sempre um aluno de Stanislavski”. Stanislavski, em outra ocasião, o chamou de “filho pródigo”. De fato, os dois estavam sempre em processo de troca.



Desde sempre inquieto, Meyerhold, a partir de 1924, começa a divergir do percurso tomado pelo Partido Comunista Soviético, que exige que o teatro desempenhe uma proposta ideológica na construção do socialismo, com obras que reflitam o cotidiano, conceito básico do realismo socialista. Com a montagem de O Inspetor Geral, em 1926, Meyerhold irá atingir o auge e também prenunciar o fim de sua brilhante carreira. Foi perseguido pela crítica oficial, pela classe teatral e por toda uma geração de artistas. Isolado e solitário, passou a fazer frente ao período mais sombrio do stalinismo. Sua reputação, no entanto, não é de todo abalada. Em 1935, Stanislavski irá dizer: “o único encenador que conheço é Meyerhold”.



Sempre contestadora, a carreira de Meyerhold é ameaçada quando, em 1938, o seu teatro é fechado por decreto, com a justificativa de que ali havia “difamações hostis contra o estilo de vida soviético”. Stanislavski irá surpreender a todos convidando Meyerhold a trabalhar com ele no novo Teatro Ópera Stanislavski. Era uma decisão valente oferecer proteção a alguém que caíra em desgraça diante do sistema. Mas Stanislavski sabia o que estava fazendo e, aceitando as responsabilidades de sua decisão, alegou: “Precisamos de Meyerhold no teatro. Ele é meu único herdeiro”.



Stanislavski morreu em agosto de 1938, aos 75 anos, e foi enterrado ao lado de Tchekhov. Meyerhold morreu em fevereiro de 1940, tinha 66 anos e foi fuzilado pelas tropas do regime de Stalin, na prisão. Fora detido algum tempo antes, após o Congresso Geral dos Diretores Teatrais, por ter se negado à manifestação pública de submissão e retratação artística. Sua mulher, a atriz Zinaída Raikh e também primeira atriz de sua companhia, foi encontrada morta em seu apartamento, pouco tempo depois da prisão de Meyerhold.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Rito: Linguagem Secreta, por Ivam Cabral

Toda a produção artística de Artaud é formada apenas de rastros, vestígios, secreções. Ele nos afirma que “o teatro é sempre um ato perigoso”, não somente lúdico. Assim, todo o seu trabalho tem a ver com a idéia do rito. Não como cópia, mas como entrega, como se quisesse fundar na cultura este comprometimento. Vivenciar esse “perigo” é reconquistar uma ciência. Mas é um processo sempre de desorganização porque os afetos, quando esta experiência é vivida em sua intensidade, são re-trabalhados.

Mas esta desorganização – que não é um surto nem uma experiência mística, antes um experimento científico – é sempre programada. Porque o teatro é a ciência que tem o artista como foco. E este artista deve saber transitar nesta desorganização. Porque para Artaud não existe diferença entre arte e vida.

Em “O Teatro de Serafim”, Artaud irá dizer que “teatro e ciência são uma coisa só”. Por isso, ao propor o ritual, ele estará propondo a fabricação de uma pessoa ao afirmar que “o teatro reconstrói o corpo”.

Em sua obra, Artaud vai concluir que o teatro fala de uma linguagem secreta e para chegar as suas questões, deve-se ser investigado. Para ele, o teatro é um campo de culturas que pesquisa uma linguagem perdida. Para isso, propõe a regressão, a volta às origens, colocando a cultura não apenas no âmbito estético, mas da sociedade. Analisa a criação e conclui que ela é um despedaçamento, a perda de algo.

Mas é necessário reinventar, no teatro, o ritual porque o ator tem o poder de ação sobre o espectador. Este ator não deve representar, mas experenciar. Só assim o fenômeno teatral é constituído como algo sagrado, vivo. Como um rito de passagem, uma instabilidade onde a identidade é dissolvida para depois ser reconstruída.

O rito abre uma outra relação com o tempo. Nele, esse tempo não é vivido de forma cronológica. Existe a idéia do eterno presente, um estado de suspensão. O ritual não tem necessariamente semelhanças com o ato cerimonial. Tem, sim, qualidade de ações: estar presente, inteiro, intenso.

O teatro deve superar o aspecto lúdico, apenas. É necessário que se chegue nos conflitos originários do ser humano, que estão congelados. E para se chegar até aí, devemos “desmontar o organismo”. Só isso.